terça-feira, 28 de setembro de 2010

Entrevista a João Ramalho-Santos





Entrevista de António Piedade a João Ramalho-Santos, Investigador Principal do grupo de Biologia da Reprodução e Fertilidade Humana do Centro de Neurociências (CNC) e Professor Associado do Departamento de Ciências de Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC):

António Piedade – Investigadores da Universidade de Brown e do Women & Infants Hospital em Rhode Island (USA) publicaram um artigo no Journal of Assisted Reproduction and Genetics em que mostram terem desenvolvido, pela primeira vez e artificialmente, uma estrutura tecidular tridimensional que mimetiza um ovário. O que é um ovário artificial e quais as suas aplicações actuais na medicina reprodutiva?

João Ramalho-Santos – Têm sido publicados vários estudos deste género, e nenhum ainda provou ser funcional (resultando em nascimentos). Isso apenas sucedeu em modelos animais, como os ratinhos. O trabalho relaciona-se (embora indirectamente) com a área de Oncofertilidade, e com o facto de mulheres poderem perder a sua capacidade reprodutiva após um tratamento oncológico. A ideia é que se possam recolher pequenos pedaços do ovário antes do tratamento, de modo a congelá-los e a serem utilizados pela mulher posteriormente. Há várias hipóteses para o uso desses pedacinhos de ovário: ou transplantá-los para a mulher de modo a restaurar a fertilidade, ou obter oócitos funcionais in vitro, mimetizando a estrutura e função do ovário de modo a obter oócitos a utilizar em Reprodução Assistida a partir do tecido congelado.

AP - Entre o nascimento de Louise Brown, primeiro bebé-proveta, a 26 de Julho de 1978, e o prenuncio de ovários artificiais fruto da actual engenharia de tecidos, decorreu uma intensa revolução na biologia celular e molecular e uma excitante evolução no conhecimento que temos sobre a fertilização e desenvolvimento embrionário. Pode-nos retratar os principais desenvolvimentos ocorridos desde então para podermos contextualizar a “passagem” do tubo de ensaio para o ovário artificial?

JRS - Houve desenvolvimentos muito importantes. O maior de todos foi a introdução da injecção intracitoplasmática de um espermatozóide no oócito (ou ICSI), por Gianpiero Palermo e colaboradores em 1993. Geralmente a técnica é utilizada quando há poucos espermatozóides ou estes são imóveis, mas tem suplantado a fertilização in vitro "clássica" em muitos centros. Infelizmente podemos hoje dizer que muitos "desenvolvimentos" difundidos nos últimos anos (a aplicação de técnicas de clonagem, o uso de gâmetas masculinos imaturos, por exemplo) têm uma taxa de sucesso que nem sequer é baixa, é zero. Houve na divulgação destas técnicas alguma irresponsabilidade e excesso de mediatismo (também em Portugal) que mascarou os pequenos, mas cruciais incrementos na qualidade dos serviços prestados em termos de manuseamente e cultura de gâmetas e embriões, estimulação hormonal, e uso de técnicas (simples ou sofisticadas) para determinar causas de infertilidade e qualidade dos gâmetas, de modo a escolher os melhores. É bom as pessoas saberem que há causas para a infertilidade, que estamos a tentar (e bem) levar a cabo algo que não ocorre durante uma actividade sexual normal, por qualquer motivo, e que não há técnicas nem centros milagrosos. A taxa de sucesso do ponto de vista mundial é muito constante e ronda os 30%.

AP - Após a fecundação, o óvulo fecundado “viaja”, das trompas de Falópio até ao útero, “embrulhado” em folhetos celulares provenientes do ovário. É possível esperar diferenças entre embriões desenvolvidos in vitro ou in ovarius artificialis (se me permite a designação)?

JRS – É, sobretudo num dos aspectos actualmente mais em voga na biologia celular e molecular: a epigenética. Sabemos hoje que mesmo que os genes se mantenham inalterados do ponto de vista da sequência clássica de ADN, poderão sofrer alterações subtis que condicionarão a sua actividade. Está provado que alterações epigenéticas ocorrem em gâmetas e embriões cultivados in vitro (com alguns efeitos a longo prazo em ratinhos), e não seria surpreendente que ocorresse neste caso. Obviamente que o objectivo é tentar mimetizar o que sucede no humano, mas é bom lembrar que se podem fazer experiências em ratinhos que seria difícil ou impossível fazer em humanos, quer por razões práticas, quer por razões éticas.

AP – Qual a expectativa da aplicação deste e outros avanços provenientes da bioengenharia de tecidos, para uma melhor compreensão quer da fecundação quer das primeiras etapas do desenvolvimento embrionário?

JRS – O desenvolvimento embrionário inicia-se com a fecundação, que já ocorre nas Trompas de Falópio. No entanto este tipo de estratégia pode ser muito importante para estudar o desenvolvimentos dos folículos ováricos, no interior dos quais estão os oócitos. Pode ser obtida informação básica muito relevante, que depois ajude a amadurecer oócitos in vitro, até em casos em que tal não ocorre, por algum motivo. Nos mamíferos há sempre o problema de estes processos decorrerem internamente e serem por isso difíceis de estudar. Se pudermos mimetizar credivelmente alguns processos "cá fora" estes tornam-se mais fáceis de estudar. Desse ponto de visto todos os modelos são bem-vindos.

AP – Já nasceram crianças em mulheres que receberam, após término de determinada situação clínica impeditiva de maternidade, implantes de tecidos ováricos próprios previamente crio-preservados. Estes ovários artificiais, que a gora se anunciam, não apresentarão uma grande taxa de rejeição uterina por serem “estranhos” ao organismo materno? Espera-se uma possível utilização universal destes ovários artificiais?

JRS – Uma questão importante é de facto saber qual destas estratégias (transplante de pedacinhos de ovário ou o ovário inteiro; ou a maturação in vitro) resultará melhor. Relembre-se que a função do ovário é também produzir hormonas importantes a outros níveis. É muito provável que ambas possam ser utilizadas, dependendo dos casos. Em princípio o transplante de tecido ovárico ou de estruturas obtidas com células da paciente será para a própria paciente, pelo que não haverá grande risco de rejeição. Quanto aos embriões obtidos de oócitos maturados in vitro neste tipo de estrutura tridimensional há muito poucos dados mas não se prevê nenhuma rejeição uterina anormal, bastando para isso lembrar que uma mulher pode receber com sucesso embriões que não lhe são geneticamente aparentados. O embrião é uma estrutura muito "invisível" do ponto de vista imunológico, de modo a não ser considerado um corpo estranho pela mãe.

AP – A crio-preservação de tecidos ováricos para futura utilização e/ou desenvolvimento de ovários artificiais representam possibilidades de resolução de situações de infertilidade devidas a problemas nos ovários naturais. Que implicações éticas nascem com estes desenvolvimentos?

JRS – Não vejo que a utilização de tecido ovárico por parte da paciente do qual foi retirado de modo a restaurar a sua fertilidade (quer por transplante para a própria, quer através de cultura in vitro) levante quaisquer objecção ética, a não ser pelos que se opõem de todo à Reprodução Assistida, uma posição insustentável, em minha opinião. Imagino que tal poderá ocorrer caso a paciente infelizmente faleça e a família pretenda utilizar o tecido. Ou, eventualmente, caso a congelação ocorra por motivos pessoais (adiar a maternidade) e não clínicos. São coisas a discutir à medida que estas técnicas (ainda incipientes) comecem a ser utilizadas com sucesso por vários grupos. Algo que ainda está muito longe de acontecer, e é bom sermos comedidos no aconselhamento a pacientes, de modo a não repetir exageros passados quanto ao sucesso destas intervenções e a evitar discussões completamente inúteis. Imagino que a criação de um útero artificial, no qual trabalham vários grupos, levante bem mais questões éticas, mas esse será um assunto para outra altura.


António Piedade, publicado no Diário de Coimbra a 28 de Setembro de 2010

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